Os casamentos são um pequeno micro-cosmos de um casal, consequência natural do que cada um entende como “o que é o nosso dia feliz” e “o que estou disposto a tolerar em nome do meu ecossistema”. Aparte de decisões drásticas efetuadas por motivos económicos, creio que esta afirmação é relativamente indiscutível e livre de controvérsia.

A minha, ou nossa, pois é característica partilhada com a minha esposa, experiência com casamentos levou a uma gradual descrença que são eventos em que eu quero participar no geral. Tal deriva da experiência de casamentos de família, casamentos de dimensões colossais, casamentos cujas opções alimentares são dúbias na ótica de um adulto com o paladar de uma criança…

Com o passar dos anos, a história mudou um pouco, e não posso dizer que os últimos casamentos a que fui tenham sido maus, pelo contrário. Casei o meu melhor amigo, casei-me a mim, evitei ir ao casamento de um amigo de infância com que falo (infelizmente) uma vez por ano e não conheceria ninguém no seu evento.

Mas há uns dias fui ajudar a casar um casal amigo e vizinho. Um casal que surge algo recentemente nas nossas vidas, considerando que estas já são suficientemente longas para os tempos serem relativizados.

E fiquei surpreendido.

Surpreendido porque tudo foi tão fora do que eu diria ser a minha zona de conforto, o meu habitual, que aparentemente todos os astros estariam alinhados para eu querer sair dali o mais rápido possível. Foi como se tivesse passado oito horas num Universo paralelo que é contrário ao meu… e tivesse gostado muito. O que levanta algumas questões filosóficas e éticas, tanto quanto à minha pessoa quanto àquelas que agora passeiam um pedaço de metal inerte em torno do dedo. Atentemos neles primeiro, pois são os comandantes deste ambiente, sem o qual não existe auto-reflexão.

People are good?

A minha amiga neste casal assim se tornou durante uma fase de trabalho difícil que ambos vivemos. Situações complicadas são o meu forte oratório, que se centra habitualmente em estabelecer a comédia dos cenários dantescos. Entre a vontade de ajudar outrem e a necessidade de nos entretermos até à hora de fecho de onde trabalhávamos, assim nasceu a nossa amizade. Eventualmente ela ajudou-nos a encontrar casa quando estávamos à procura e assim nos tornámos vizinhos. Nesta epopeia da vida banal (comprar casa em Portugal merece narrativa de Homero) conheci o namorado desta amiga, uma pessoa tão dada ao desporto quanto eu sou dado a evitar a sua menção. Nestes dois casais encontramos sempre tantos gostos dispares quanto aqueles que nos unem.

Entre a nossa chegada tardia às suas vidas e a situação conveniente em que nos podemos encontrar com facilidade durante a semana, nunca tinhamos experienciado o micro-cosmos da rede social deles.

E quão diferente é este… quão diferente é ver uma pequena legião de padrinhos, madrinhas e família a declamar que estas duas pessoas que se juntam são efetivamente muito boas pessoas e que as amam e que todos ali presentes têm um imenso privilégio de estar presentes? Quão diferente é ouvir a história de um casal que se juntou cedo nas suas vidas, fez um percurso incrível de crescimento juntos e é indistinguível de uma entidade singular, preservando ambos as discrasias que garantem que não são apenas mais uma amálgama amorfa? Quão estranha é esta noção de que, por onde eles passam, novas pessoas são adicionadas às suas vidas, todas elas com tanta vontade de partilhar nestas vidas, um pouco como nós agora?

E porque é que nós não estamos a ver drama? Onde é que está o drama? Eu sei que ele está lá, é quase garantido que entre cem pessoas, pelo menos duas pretendem inverter os ossos da face uma da outra… mas não estão à vista aqui. Se existem, deixaram as suas disputas de parte porque este casal não merece que nada de mal aconteça neste dia, e o respeito é suficiente para suplantar quaisquer transtornos do ego. Do nosso lugar das mesas, ninguém parece ter inalado os ares de Estarreja quando por lá se passa na A1.

Mais uma vez, este casamento teve tanto de comum com o nosso quanto de dispar. Algumas das suas boas ideias gostava de as ter tido no nosso casamento. Mas o que surpreende são as pessoas, pessoas diferentes daquelas do nosso universo, mas todas elas boas, prestáveis, simpáticas, interessantes de uma forma contrastante. O que têm em comum é a ligação a um casal que parece um íman de seres humanos que não são lixo. E que nos trouxe também a nós, e agora nos faz pensar se somos bons o suficiente para ali estar e viveremos sempre no medo de sermos descobertos.

Metamorfose?

Claro que nada é preto no branco. Ninguém é verdadeiramente unifacetado, ou pelo menos ninguém que justifique dispensar umas frases. Muito menos eu, que aqui dispenso a palavra “nós” do árduo trabalho que tem feito nos últimos parágrafos. Eu sou, em parte, o produto de um conjunto de vivências que produziu alguém que crê que as pessoas são intrinsecamente boas, mas ficam na generalidade aquém. Alguém não pode viver décadas da sua vida inculcado com valores de elitismo sem que estes deixem de tomar residência permanente. Aqueles que não partilham dos meus gostos tendem a ser discernidos com minuciosa atenção, os seus mínimos defeitos examinados à lupa para que possa concluir que “o meu caminho está certo, ele está errado”. É possível ou provavelmente um mecanismo de proteção.

Mas não é, hoje, um entrave tão grande, ou um traço importante quanto foi outrora. Um pouco como os cartoons que mostram um fascista/nazi/anti-semita/mau-da-fita-habitual a fazer várias viagens pelo menos e perder a sua atitude discriminatória pelo caminho (algo em que não acredito de todo, pois mantenho que o turismo não fornece imersão no quotidiano das outras culturas), a melhor forma de perder atitudes elitistas ensinadas em tenra infância consciente ou inconscientemente, é contactar com diferentes pessoas que são diferentes mas boas, por vezes melhores. O que, tal como no cartoon, tem grande probabilidade de não ser uma jornada fácil. As atitudes discriminatórias são a sua própria auto-defesa, pois afastam a priori aqueles que podem provar o seu contrário.

Num trabalho que deverá ter começado no questionar dos valores iniciais na adolescência, não existe uma tão grande reação cínica no que toca às escolhas diferentes das minhas. Afinal de contas, eu já fiz suficientes más escolhas ao longo da vida para saber que posso estar errado. E simultaneamente, nem todas as decisões caem no paradigma do certo/errado. Ambos podemos estar certos. Na conjuntura correta, dançar kizomba em cima da mesa é a atitude acertada. Talvez eu não o faça, e prefira estar a dizer ou escrever idiotices, mas posso estar feliz por outro o fazer. Posso ter visto ao longo dos anos que a vida académica e as canções têm notas distintas de prelúdio ao alcoolismo. Mas, talvez, no meio de amigos e no seio de uma cumplicidade saudável, “ser cá da malta” e “beber o copo até ao fim” possa ser uma coisa boa. Não para mim, provavelmente, pois vomitar meio litro de tinto na mesa dos convidados nunca seria bom para ninguém. Mas posso ficar feliz pelo casal “ser da malta” e ter um estômago capaz de tolerar umas quantas desinfeções surpresa.

Em suma, a pertença não tem de ser necessariamente um culto. E, como uma família alargada, na família inventada na malha social, alguns serão sempre um pouco diferentes. Aceito, hoje, a minha diferença como aceito a diferença dos outros, e acredito ser este um crescimento que possa um dia passar a alguém. E, como uma família funcional, aceito as minhas limitações e limites, distintos dos dos outros.

Também aceito que eu e a minha esposa seremos o casal tipo Addams Family, aquele que celebra o humor tecendo críticas acerca de outrem… afinal de contas, quão estranhos são os outros? É e será sempre uma crítica extremamente arriscada, sempre perigosamente perto de estar redondamente enganada e ser injusta.

O nosso vizinho partilhado continuará a cantar mal e ter uma barba do PNR. Inúmeras falsidades continuarão a ser conjuradas por duas mentes doentias que precisam de justificar o desalento que sentem ao ouvir mais uma malfadada balada macerada por uma laringe inapta e indiferenciada. Talvez um dia descobriremos que este torturador do sétimo círculo do inferno faz voluntariado com animais e pessoas doentes, canta por alguma causa nobre e usa barba do PNR porque quer mostrar que nem todas as pessoas que se parecem com vilões das novelas são efetivamente más. Talvez um dia sejamos amigos (improvável). E nessas circunstâncias eu continuarei a dizer que ele canta mal e que as Convenções de Genebra foram feitas para ele estar calado.

O humor tem sempre de partir de uma posição de inocência, não de malícia. Compreendo que é um malabarismo complicado e sempre sujeito a mal-entendidos. Ao contrário do discurso cómico, a realidade sobre o qual este assenta é infinitamente complexa.

E se eu perder o humor, o que sobra? Sobra muito, creio, o suficiente para entreter num jantar. E, como o pão para diabéticos, sobra algo diferente, talvez não tão bom. O humor safe, aquele que incide sobre nós próprios, seguro para estar entre dois segmentos de publicidade, não é o meu. E não o acho tão bom. A auto-depreciação é engraçada até certo ponto, mas corre também o risco de ser auto-malícia.

“Voltámos” - A conclusão e a dedicatória

Mantendo o anonimato, provavelmente ineficaz, mas necessitando de algo mais do que mencionar repetidamente “o casal”, ou “os amigos”, ou “os vizinhos”, atribuam-se nomes próprios fictícios.

Sabino e Humberta, a vossa vida enriquece tantas outras, por vezes de formas misteriosas e difíceis de compreender sem tratados filosóficos extensos e aborrecidos. A vossa história parece ter contornos de ficção, a base de um qualquer filme que nos deixa no sofá a pensar “querem mesmo que eu acredite nisto?”, mas acreditamos porque está a acontecer à nossa frente. E sabemos que há muito mais profundidade do que é declarado nesta cerimónia, mas que nada ali dito é mentira. Vocês são boas pessoas, vocês estão bem um para o outro. Naquele micro-cosmos em que nós somos convidados a participar, vocês são as personagens principais e nós simultaneamente figurantes e audiência que torce por vós, não na insegurança de que algo pode correr mal, mas na certeza que irá sempre terminar bem e que o barco está bem entregue.

Vocês lembram-nos que as pessoas são boas e fazem-nos querer ser melhores. E que ser diferentes de nós pode ser bom também. Fazem-me querer ver um jogo de futebol, mesmo que não conheça minimamente as equipas. Talvez um dia andar de bicicleta, leia-se falecer de exaustão a 10 metros da porta. Ou ir à DisneyLand, ultrapassando a fobia de França e o desgosto pelo conglomerado multinacional (provavelmente não, mas já voltava a ver o Hercules). E escrever coisas lamechas como esta, sabendo que serei indubitavelmente acossado pela minha esposa, como acontecerá quando ela estiver a rever o texto.

Desejo, novamente, a vossa felicidade eterna, e eternamente rodeada por pessoas que tanto gostam de vocês. E que, no meio de tantas a que têm de dar atenção, continue a sobrar um pouco de tempo para nos encontrarmos em torno de uma mesa, comer um frango porque estamos com preguiça de cozinhar e ouvirem este outro casal arraçado de família Addams, a dizer mal de tudo e de todos, numa quase política de terra queimada em que ninguém está a salvo.