Cabisbaixo, o gajo da flor entrou na praça. O mundo parecia mais pequeno que antes, embora pouco tivesse mudado. Além, o puto diamante dava um seminário motivacional, fazendo cross-promotion com a nova versão das bimbas, agora com sopas tão aveludadas que os bebés não as conseguiam distinguir de leite materno em ensaios controlados duplamente cegos. Os bebés de calcário mantinham o seu débito urinário constante, como crianças numa área de serviço quando os pais estão atrasados para o jantar de família.

Como encontrar um burro chamado Carlos numa praça tão ocupada e cheia de vida e comércio? Não ajudava particularmente estar a decorrer a Expo Frota, a maior feira de carroças e equídeos de locomoção de Belruf. A multidão adensava-se em torno de diversos carros de mercadoria estacionados, com os feirantes gritando em plenos pulmões as grandes vantagens dos novos modelos, que levavam mais, pesavam menos e produziam menos emissões, ou pelo menos as emissões produzidas ficavam menos frequentemente coladas na carroça, produzindo uma experiência setenta porcento mais agradável e quarenta porcento menos fecal.

E apesar de todo o burburinho que rodeava a praça, uma carroça destacava-se de todas as outras por vários motivos. Esta estava a andar, ao contrário das outras. As suas linhas eram mais arredondadas, apelando ao jovem que há em qualquer senhor com netos pequenos. Esta carroça tinha um claro cuidado com a sua coloração, discreta como um pequeno explosivo nuclear numa loja de porcelana de monges budistas. Os seus interiores eram também do que os pais do gajo da flor exclamariam “uma categoria!”, para vergonha dele e dos espetadores na área de influência auditiva. Mas, acima de tudo, a carroça estava literalmente acima de tudo. O seu burro, que a um olhar mais atento claramente se chamava Carlos, vivia a sua fantasia de pónei ao puxar esta opulente carriola, se a fantasia envolvesse alombar com uma pequena floresta em forma de crise de meia-idade.

Todo este raciocínio atingiu o córtex pré-frontal do gajo da flor e este imiscuiu-se na multidão em direção ao burro Carlos. Finalmente chegado à carroça, viu-se obrigado a atirar-se ao chão, tendo passado entre as rodas da mesma. O condutor não o tinha visto e continuara a andar, incauto. Levantando-se o mais rapidamente possível, ignorando as suas vestes sujas e agora impróprias para a passadeira vermelha, interpelou o condutor.

– Ó senhor, importa-se de parar uns minutos como cortesia de me ter atropelado não mortalmente?

A carroça parou, dando tempo ao gajo da flor de se aproximar da porta do condutor. Desta, surgiu uma cabeça ao alto, farta em caracóis não comestíveis exceto por doentes psiquiátricos. Da boca que residia abaixo dos caracóis veio a resposta:

– Senhor é o meu marido! E quem é o senhor que pratica tal descortesia de interromper os lavoures de uma jovem fornecedora?

– Sou o gajo da flor, um viajante de terras distantes e com uma mui nobre tarefa de restabelecer a ordem onde o caos se instalou pela cruel ausência de uma lantejoula do precioso e aparentemente raro metal trinâmio, de que fui informado de fonte anónima mas credível que a senhora fornece… ou fornecia, porque não o tem feito.

A condutora da torre de pinho coçou a cabeça e franziu a testa, tentando aumentar a refrigeração da sua fronte, que aparentava estar a fazer horas extraordinárias não pagas. Finalmente, após considerável tempo e com um som equivalente a um relé a disparar, retorquiu,

– Está à procura de trinâmio para o velho que faz as lantejoulas?

– Sim, isso mesmo, tal como di… – o gajo da flor foi rapidamente interrompido – então porque é que não disse logo isso? Agora tem de me contar a sua história de vida desde os ascendentes em terceiro grau para me dizer “quero trinâmio”? É pago à hora ou à palavra?

A voz da condutora do imponente bólide parecia subir de tom, com uma subjacente irritabilidade de quem não gosta de perder tempo quando é o dela. O gajo da flor percebeu que tinha de ser cuidadoso com a sua retórica se queria obter alguma informação que o ajudasse na árdua aventura que o esperava.

– Lamento, cara donzela, tanto a minha indelicadeza quanto a minha verborreia autobiográfica. Não procurando o perdão da ilustre ouvinte, que fez o obséquio de interromper a sua jornada para um perfeito estranho, atento apenas que o meu descuido na ausência de apresentar os pensamentos em formato de sumário executivo pode dever-se ao trauma causado no meu crânio através do golpe desferido ao meu nariz aquando da minha breve inspeção íntima ao chassis do seu nobre e alto veículo equideamente motorizado.

A senhora relaxou, percebendo agora que o gajo da flor não lhe queria vender um timeshare na praia do mar seco de Claglis. Ignorando acidentalmente e novamente os discretos indícios de que tinha atropelado mais um transeunte, interpretou a direção da conversa como um interesse do gajo da flor pelo seu novo veículo.

– Ah sim, percebo. Reparou que eu tinha uma carroça toda janota, não é? É um SUV, um super utilitário de vendas! Extremamente prático e um pouco mais alto que os carros habituais. Pode não parecer mas eu já tenho a minha idade, e muitos anos a transportar metais entre minas e cidades não são muito gentis para os joelhos. Como o SUV é mais alto, consigo entrar melhor e custa-me menos a conduzir.

O gajo da flor estava perplexo, conseguindo apenas proferir – mas… a carroça é tão alta que precisa de um escadote para lá entrar. – sendo ignorado pela fornecedora, que continuou na sua jornada de auto-ilusionismo.

– Sim, isso, ser mais alto não ajuda só com os joelhos! Também consigo ver melhor, esta carroça tem ótima visibilidade!

A mente do gajo da flor entrou em colapso interno, incapaz de encontrar as palavras para explicar quão imprático era o carro e o raciocínio. Como conseguia auto-iludir-se esta comerciante e como seria ele alguma vez apto para trazer de volta à razão alguém que está tão longe da realidade que nem um agente imobiliário admitiria estar a 30 minutos da capital? Não lhe passou pela cabeça que talvez bastasse dizer que viu duas crianças entaladas nos eixos da carroça quando por lá passou há poucos instantes.

– E é muito mais seguro, menino da flor! Estas carroças são muito bem construídas! Nunca se pode estar suficientemente protegido quando as pessoas estão a escolher carroças cada vez maiores, é por isso que escolhi uma carriola maior desta vez! E tem imenso espaço para a minha bagagem, ainda ontem tive de levar vinte lingotes de aço e só tive de levar dois no colo. Com o carro antigo cabiam todos atrás mas isso é porque dava para rebater os bancos o que é claramente batota.

Cansado desta linha de pensamento, o gajo da flor atreveu-se a responder.

– Mas e os consumos? E o impacto na sociedade?

A conversa continuou, essencialmente no mesmo espectro de argumentos circulares, estrategicamente omitidos porque o autor estava a ficar com fome e sido chamado para ir almoçar. O gajo da flor estava visivelmente alterado. Tinha passado a última hora no meio da praça a discutir com uma cabeça, pois ainda não havia conseguido avistar mais do que isso do plano inferior em que se encontrava e não podia excluir que a comerciante não se tinha fundido com a carroça no ato último de união, em que se havia tornado numa única entidade com o veículo menos prático do planeta, tanto física quanto cognitivamente. Independentemente do desfecho da discussão, era certo que não conseguiria qualquer informação fidedigna de mais uma inominada entidade. Começava a irritá-lo também a procrastinação do criador de não dar nomes às pessoas. Isso dificultaria a tarefa de dizer mal delas à mesa com os amigos no futuro. Decidiu que a informação preciosa não valia a sua sanidade mental, até porque precisaria dela para atuar e encontrar o trinâmio, esse metal com um nome tão abstrato que mais parecia inventado. Assim, concluiu a conversa, rematando com um eloquente e estratégico “quem diz é quem é”.

A comerciante entrou em erupção com o insulto elegante do gajo da flor e desenrolou todos os impropérios considerados demasiado impróprios para a baixa sociedade. Os gritos estenderam-se por mais alguns minutos, deleitando o gajo da flor com o seu triunfo moral e adequada escolha de palavras. De olhos fechados e apreciando o comboio de injúrias, foi subitamente interrompido com um toque na anca do casco do burro chamado Carlos, que tinha aproveitado o tempo livre para escrever uma mensagem numa pequena folha de papel, que entregava agora em boca. Após recebê-la, também em boca, o gajo da flor escondeu-a, percebendo que o burro Carlos agia agora contra a vontade da sua dona, esperando pela eventual partida da carroça tão alta que no seu topo o sol se punha mais tarde.

Quando o carro arranha-céu se perdeu de vista, o que demorou cerca de uma hora depois do burro se esconder no horizonte, o gajo da flor desenrolou cuidadosamente o pedaço de papel que lhe foi confiado, que lia:

Foi o Dragão de Odemira.

XOXO, Carlos

  • Gajo da flor recebeu: mensagem do burro chamado Carlos
  • Gajo da flor derrotou: senhora da carroça grande
  • Gajo da flor ganhou experiência: 10pt
  • Gajo da flor escreveu no diário