O bazar em que o gajo da flor se encontrava arrancou-o da marítima realidade de Belruf, deitando-o de volta em casa. Aos cheiros do trabalho em metal e do trabalhador de metal, imiscuia-se um discreto mofo, perdão, bafio, típico da casa da avó cujo neto devia ter visitado mas está sempre demasiado ocupado para o fazer.

As paredes da loja de lantejoulas encontravam-se forradas de tecidos lustrosos de diferentes cores, contrastando com as parcas lantejoulas que lá pendiam. Onde outrora o cenário seria de opulência numa rave dos anos sessenta, hoje era de um acenar a memórias passadas. Mas um acenar de quem não tem a certeza que viu alguém conhecido e está a tentar disfarçar ou pelo menos ter alguma hipótese de alegar mais tarde que estava a afastar um bolo de noz.

Atrás do balcão, um senhor de idade trabalhava uma lantejoula com um polidor manual. O gajo da flor nunca tinha visto um polidor manual, mas na realidade também nunca havia vislumbrado um automático, semi-automático ou qualquer tipo de gradação de polidores. Belruf era o único exportador de materiais luzidios em todo o continente, por razões misteriosas e que provavelmente não serão exploradas mais à frente na história. Particularmente com pausas de oito anos entre capítulos. O som do polidor contra a lantejoula abafou os passos do gajo da flor, até que este se encontrava tão perto que a sua face refletiu no pequeno espelho e cruzou olhares com o seu produtor, produzindo um misto de incredularidade e excitação (do tipo não sexual, os produtores artesanais de lantejoulas são pessoas extremamente sérias).

– Bom dia, ou boa tarde, caro cliente! Como posso ajudá-lo?

O gajo da flor notou que algo tinha mudado. De repente, como se um vulto se levantasse, sentiu que o atravessar da ombreira desta pitoresca loja tinha demorado uma infindável eternidade. Tocou-se na face, certificou-se que a sua juventude não o tinha abandonado. Os seus olhos humedeceram-se, – oh como posso eu ter sido assim abandonado? – pensou. Mas nada disto fazia sentido, o tempo não passa nas histórias. Mais importante do que essas sensações absurdas, era o facto que de repente estava a utilizar travessões para falar em vez de aspas.

– Porque é que usou um travessão para falar? – perguntou. A resposta do artífice foi a esperada.

– Porque não? Agora tenho ar de estrangeiro? E de qualquer modo, as lantejoulas não gostam de aspas, às vezes prendem-se no meio delas e é uma chatice para as tirar de lá. É preciso ir com uma espátula, depois se as aspas são curvas podem riscar a lantejoula e é mais duas horas a polir… isso se der para recuperar! Uma vez tive cá o meu neto, que tinha passado duas semanas em Nordrun, veio cheio de jeitos e estrangeirismos, meteu-se à conversa com o homem que me transportava as lantejoulas e estragou-me duas semanas de trabalho! Foram incontáveis os serões a recuperar o tempo perdido e gritei tanto com ele que a minha filha até deixou de me dizer “calçado”!

A citação do artesão, com as suas aguçadas aspas, rasou sem tocar a sua lantejoula, apagando momentaneamente qualquer indício de cor da sua face. Continuou.

– Mas volto a perguntar, antes que me descuide novamente com citações, estrangeirismos, insinuações ou inuendos. Como posso ajudá-lo?

– O capitão Estrela contratou-me para resolver um problema da maior importância. Reza a sua história que o senhor ofereceu-lhe uma lantejoula que adornava a casaca, lantejoula essa que desapareceu. Vim aqui na esperança de que o honrado opífice possa substituí-la a assim restituír a sua boa aparência… ou algo assim.

O artesão coçou a cabeça, lembrando o capitão Estrela mas olvidando a sua lantejoula.

– Tem a certeza que era uma lantejoula? Não seria antes um alfinete de gravata? Há umas décadas eu gostava muito de oferecer alfinetes, acho que dei um ao Estrelita.

– Não, não, era uma lantejoula, segundo ele. – O gajo da flor, confrontado com a rarefeita memória do trabalhador, sentiu o seu cartão das pousadas da juventude ameaçado. – O que o capitão disse foi “O casaco foi uma prenda de um amigo de longa data”.

O amigo do capitão levantou reflexivamente a mão, cobrindo a lantejoula das aspas, que o cortaram no dorso da mesma, mostrando o sangue que novamente fugia da face como o senso comum de um arquiteto. Esclarecido, respondeu.

– Ah, eu dei-lhe o casaco! Pois, também tive uma fase de casacos e costura no geral. Sabe, isto de oferecer o fruto do nosso trabalho não é muito boa prática. Eu não estou no ofício de oferenda de lantejoulas, estou no da troca desses bens por ouro. Mas a dada altura também adornava os casacos, mas está tudo nos livros, eu comprei essas lantejoulas a mim próprio para as colocar no casaco do Estrelita! Deixe lá ver.

Geologicamente, a figura geracional levantou-se, com o leve grunhido daquele cujas articulações foram reduzidas a pó de nestum há duas décadas, sobrando apenas apófises ósseas, essas mesmas tão polidas umas contra as outras que no dia em que forem depositadas a sete palmos de terra, as minhocas e percevejos terão a sua fase de disco music. Retirou um largo, pesado e bastante antigo livro de transações da parede. O gajo da flor reparou que os livros se tornavam cada vez menores ao longo dos anos, sendo os últimos tão reduzidos que seriam mais apropriados para leitura obrigatória do ensino básico.

Notando o correr do olhar do gajo da flor, o produtor de espetáculos texteis refletores começou a explicar as perguntas que sentia pairar no ar.

– O negócio das lantejoulas está cada vez pior para estes lados, sabe. Em parte, é porque as pessoas têm medo de encandear os marinheiros, mas são tudo contos! E a grande culpa recai na falta de gosto pela qualidade. Quem quer lantejoulas hoje vai tudo ao Lantejoulas e Companhia e compra o que não é mais do que um pedaço de liga que mal pode ser tida como metal, polida com um sonho e saliva. E nem sequer é saliva espessa, é uma coisa muito líquida e pouco enzimática, que mais depressa transformava pão em papa do que em nutrientes.

Enquanto os lábios proferiam o lamento e factos bioquímicos invulgares na metalurgia, os hábeis dedos folheavam o livro, até que pararam numa entrada.

– A lantejoula do Estrela não é uma lantejoula qualquer. É feita de trinâmio! Só o melhor para o meu Estrelolito, ah que saudades! Mas isso é um problema, não há um grama de trinâmio neste momento em todo Belruf!

O gajo da flor considerou o problema e questionou:

– E não posso levar outra lantejoula?

Num ápice, o frágil e impossivelmente lento corpo rodopiou, transmitindo todo o momento rotacional à bochecha direita do gajo da flor. Visivelmente exaltado, como alguém a quem tentaram vender uma bola de berlim com creme quando uma sem creme foi pedida, vociferou com a maior seriedade e contendo ao máximo a raiva que refogava no seu cerne.

– Nada senão trinâmio fica bem naquele fato! Mas o senhor quer ajudar o meu Estrela ou entalá-lo com a tripulação? Não, de forma alguma há substituto!

– Mas então… como é que eu arranjo trinâmio?

– Isso não é comigo! Traga-me uma barra de trinâmio e eu faço-lhe uma lantejoula em trinâmio. Aliás, até posso fazer mais e ser o único distribuidor, portanto até lhe dou uma recompensa pelo metal remanescente! Mas como o arranja, isso não sei. O que mais lhe posso dizer? Ah, fale com o Candenrel, o meu antigo fornecedor. Ele costuma passar aí na praça todos os dias. É só esperar por aparecer alguém numa carroça cujo burro claramente se chama Carlos. Agora, se não se importa, a lantejoula está a ficar fria.

Com isto, o inominado artífice sentou-se, deixando o gajo da flor arrastar-se para fora da loja, agora ele tão lento e geológico quanto o homem que o atendeu.